Nostalgias de inverno | Comida preta

Já estamos no fim do inverno, mas acredito que esse tema e essa nostalgia seja atemporal. Afinal de contas, sempre é tempo de preparar uma receita que é memória afetiva pra gente. Esse texto, Nostalgias de inverno | Comida Preta, nasceu das conversas na cozinha, chá da tarde e conversas fiadas pós almoço aqui em casa.
Chamo de nostalgia de inverno porque quero apresentar aqui as memórias culinárias da minha família, que neste inverno, conversaram muito sobre pratos e quitutes que fazem parte da nossa identidade como uma família negra gaúcha.
Muitos de vocês devem conhecer a culinária gaúcha a partir do churrasco e do chimarrão, além da culinária italiana e das cucas e cafés coloniais alemães, heranças das colonizações no século XIX.
Neste inverno meu pai e meus tios desejaram e falaram muito sobre o mocotó, mondongo, língua de boi, feijoada, a farinha de cachorro, o quibebe, canjica (ou munguzá) e outros pratos fazem parte da cultura culinária afro-gaúcha.
Acredito que esses pratos sejam conhecidos e preparados em vários lugares no Brasil, mas sua origem é negligenciada (pra dizer o mínimo). A feijoada, por exemplo, tornou-se um símbolo da culinária brasileira, no entanto, há muitos pesquisadores que não dão crédito às tecnologias africanas e afrobrasileiras na criação dessa iguaria e outras delícias.
Identidade e (Re) existência
Na exposição Migrações à Mesa de 2019, organizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi produzida uma série de vídeos sobre a identidade, memória e cultura alimentar gaúcha. No vídeo sobre as Comunidades Quilombolas, entrevistaram moradores do Quilombo Mocambo, no bairro Cidade Baixa, na região central de Porto Alegre.
No vídeo, eles descrevem a origem do Mocotó e sua importância na construção da identidade negra no estado, assim como a cultura alimentar afro-gaúcha.

O Mocotó gaúcho tem uma particularidade. Ele é feito com mondongo (bucho), pata de boi, feijão branco, diferente de outras regiões do país. Como o comentário no vídeo do Quilombo Mocambo, hoje em dia preparar mocotó é caro. O que antes era descartado hoje é muito apreciado e até mesmo se tornando tendência gastronômica sustentável, onde o aproveitamento integral de alimentos é uma prática para evitar o desperdício de alimentos.
No trabalho da autora Carolina Vergara Rodrigo, “Mulheres Negras em Movimento: trajetórias” ela traz o relato de uma das mulheres que participa da sua pesquisa relatando sua relação com o prato e sua gourmetização.
“Eu acredito que o vatapá foi criado lá dentro da senzala e que foram aprimorando, é que nem o mocotó. Mas que agora o mocotó é dos portugueses, se eram os negros que comiam os restos dos bichos. Matavam o boi, e davam as patas, o bucho, o saco do boi, para os negros, e as tripas. Os negros lavavam aquilo e faziam um sopão, só que aquilo como virou [um prato reconhecido], já não é mais dos negros, e tem outro nome.” Vera Macedo, entrevista cedida em 1° de março de 2010.
Aqui em casa, detalhes sobre os modos de fazer, o melhor preparo, tipo de carne ou a qualidade dos ingredientes é assunto recorrente. Ainda ouço frases do tipo “a vó fazia de tal jeito” ou “abóbora precisa ser de pescoço para fazer o doce” e detalhes que nenhum livro ou caderno de receitas pode entregar. São as conversas e a observação que entregam os detalhes.
Além do mocotó, inúmeras outras receitas pairam nessa memória nostálgica de uma comida preta afro gaúcha. E para o que antes não havia nome, hoje é mais valorizado e nomeado, apropriado para a nossa história. Embora eu tenha uma alimentação vegetariana estrita, escuto tudo com muita atenção.
Heranças das charqueadas, tecnologias do continente
A presença de pessoas africanas e negras afro-brasileiras escravizadas no Rio Grande do Sul se fortaleceu a partir da criação das charqueadas para produção de charque (um tipo de carne seca) para abastecer o restante do Brasil no período colonial. As fazendas de charque criavam gado, que posteriormente era abatido e as mantas de carne salgadas e expostas em varais para desidratar.
As pessoas negras nestas fazendas eram responsáveis pela preparação do charque e as partes menos nobres dos animais, supostamente descartadas pelos senhores da fazenda eram utilizadas por eles. Miúdos como pata de boi, rabo, intestino, bucho, língua, eram usados para fazer ensopadas como o mocotó e a feijoada, por exemplo.
Aos curiosos: a carne de sol nordestina, a carne seca e o charque são carnes desidratadas mas feitas em processo diferentes. A carne de sol é feita artesanalmente com carne de bode ou de boi e não é tão salgada e desidratada. Já a carne seca e o charque são mais salgados e mais secos. Sendo o charque um processo artesanal feito com a parte dianteira do boi e a carne seca já é um processo industrializado.
Nessa nostalgia de inverno temos comida preta
A canjica, que no nordeste é conhecida por munguzá, aqui pode ser feita com milho branco ou amarelo, leite de vaca ou ainda leite de coco e até mesmo feita somente com água, açúcar, cravo e canela. Cozida até ficar com um caldo cremoso.
Falando em milho, os mais antigos consumiam angu de milho ou de farinha de mandioca. Já os mais novos comem polenta por conta da influência italiana. O café com farinha ou ainda a farinha de cachorro feita com farinha de mandioca, amendoim e açúcar também é uma receita que atravessa gerações na negritude gaúcha.
Não posso deixar de mencionar que a culinária afro-brasileira aqui no sul também está presente nas tradições de matriz africana como no batuque, religião de matriz africana criada aqui no estado. As religiões de matriz africana tem no alimento um valor importantíssimo e aqui no Rio Grande do Sul se faz presente com algumas adaptações de ingredientes.
A conversa sempre esteve na cozinha
Entre quitutes, afazeres e conversas vamos construindo diálogos e pontes, principalmente entre os mais velhos e os mais novos. Onde os saberes vão passando de geração em geração através da oralidade. Por isso, não deixe de conversar e cozinhar sua história na cozinha!
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Confira alguns textos de referências deste post:
Carne Seca. Instituto Brasil à Gosto. Disponível em: https://www.brasilagosto.org/carne-seca/
Costa, C. S; Del Re, M. F.; Santos, J.; Mouzer, M. V. S; Kubo, R. R. “Claro que vai continuar, tem que comer!”: comida e memórias em quilombos do RS”.
COSTA. Rute Ramos da Silva. “A feijoada da Comunidade Remanescente de Quilombo Machadinha/RJ: para pensar o mito da democracia racial.” “Tempero de quilombo na escola: Experiências de extensão do projeto CulinAfro”, organizado por COSTA, Rute Ramos da Silva; DE CASTRO, Maria Luíza Lima; BRASIL, Alexandre.
COSTA. Rute Ramos da Silva. “A comida brasileira e o mIto da democracia racial”. Mídia Ninja. 2021. Disponível em: https://midianinja.org/a-comida-brasileira-e-o-mito-da-democracia-racial/#:~:text=A%20comida%20da%20mistura%20racial,Por%C3%A9m%2C%20diziam%20eles%3A%20civilizar.
PAIVA, Maria da Conceição. “A presença africana na culinária brasileira: sabores africanos no Brasil”. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2017.
RODRIGUES, Carolina Vergara. “Mulheres Negras em Movimento: trajetórias militantes, negritude e comida no Sul do Rio Grande do Sul”. Universidade Federal de Pelotas, 2021.
Vídeo | Exposição “Migrações à Mesa” – Comunidade Quilombola | UFRGS TV Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jh4ZEKrt3VI
Vídeo | Alimentação, Cultura e Identidade – UFRGS TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6pVgTNcQ9G8
Vídeo | Culinária Afro (bloco 1) – Nação TVE/RS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NTAqC7J5X3M
Vídeo | Culinária Afro (bloco 2) – Nação TVE/RS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GsOjlKcTq9E
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Parabéns, Natália. Muito legais teu trabalho. Continua.